Etnias em Risco: uma questão de sobrevivência para as comunidades indígenas

Ao refletir sobre os moldes de formação do novo mundo é impossível não reviver as dolorosas feridas cravadas nos povos nativos, a colonização, ao contrário do que dita a crença eurocêntrica, não trouxe a civilização ao continente, pelo invés, arrastou consigo a dizimação de tudo que se interpunha entre o homem branco e os seus interesses. A Terra das Palmeiras não foi poupada da arrogância europeia, que se engalfinhou em nossa costa através, majoritariamente, da intervenção portuguesa no desenvolvimento da civilização indígena.

Os humanos que compunham as diversas sociedades, intituladas de maneira generalista de povos indígenas, organizavam-se em suas próprias hierarquias, cultuavam suas próprias divindades e comunicavam-se em seus próprios idiomas. Entretanto, esses povos não eram um grande conglomerado homogêneo, em verdade, a variabilidade étnica que se estendia pelo território, que hoje chamamos de Brasil, era extensíssima, estima-se por cerca de cinco milhões de pessoas.

As navegações portuguesas comandadas por Pedro Álvares Cabral possuíam cerca de 1,5 mil homens como tripulantes e aqueles que foram requeridos para a longa excursão, mas não exerciam uma função importante dentro das caravelas, não puderam usufruir de nenhum conforto. Resultando em uma experiência putrefata, sem o mínimo de higiene e alimentação necessária para a jornada marítima de 44 dias. Como relata o livro Viagem à Terra do Brasil de Jean de Léry (1534-1611), os homens de Cabral dormiam no mesmo local em que os tonéis de água eram armazenados junto aos alimentos, que por sua vez, acabavam estragando e tornando incabível a ingestão desses alimentos, restando os ratos que corriam pelo cais, uma das únicas formas de alimentação.

Ao final dos 44 dias, o grupo chega em Pindorama. Sujos, com sarampo, varíola, rubéola e até mesmo gripe, resultado das precárias condições de locomoção. Após o contato da comunidade indígena com o homem branco, aqueles que acabaram não partindo pelas doenças, desconhecidas até o momento, perderam suas vidas em batalhas pela reconquista de seus próprios territórios que foram usurpados de maneira cruel e hedionda. Mesmo com obstinação de grupos étnicos da Europa para que suas narrativas fossem desvanecidas de nossa história, os indígenas não fugiram da luta.

E ao falar sobre luta não podemos deixar de fora a mais recente delas: a pandemia do Novo Coronavírus. A Covid-19 teve sua origem em um mercado de frutos do mar da cidade de Wuhan localizada na China, suas primeiras ocorrências foram relatadas na virada de 2019 para o ano de 2020. O vírus que se alastrou por todo o mundo, encontrou também lugar nos territórios indígenas, mostrando de modo amplificado o “Brazil” hostil e racista com a discrepância na prevenção à disseminação da doença. 

Ao mesmo tempo em que vemos hospitais de campanha sendo construídos para ajudar no combate, podemos encontrar pelo Brasil adentro, a ausência de condições básicas de saúde, precariedade nos postos de cuidado e a inadimplência das visitas governamentais. A saúde deles está intrinsecamente vinculada à desestruturação das políticas públicas, em que tornam a cada ano que passa o dever governamental tão obsoleto, a ponto dos indígenas precisarem se movimentar internamente em suas comunidades para garantir a mínima proteção aos seus. Recentemente a Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB), totalizou 37.219 novos casos e 158 povos infectados, em quatro meses o número de óbitos discorreu para 854, se tornando um dado preocupante referente a uma população que vem sendo dizimada há séculos e tem o perigo de ser esquecida ainda mais agora.
    É nítido como a doença tem ferido a memória dos povos originários e não existe outro nome a dar a essa situação além de genocídio, isso não é somente uma palavra de efeito disseminada na luta, é um fato, mais de 50% dos povos indígenas no Brasil já foram diretamente atingidos pela pandemia e não tem previsão para que isso termine, mas ao se perguntar como isso começou, temos outro fato: garimpeiros e madeireiros. Quando o Brasil parou por um curto tempo durante a pandemia e adotou o isolamento social, os exploradores de terras continuaram o seu trabalho árduo em detonar ainda mais o bioma brasileiro e levaram consigo o vírus para espalhar aos povos indígenas - sendo isso feito de forma não proposital, mas ainda assim efetiva- . Com a inoperância proposital do governo foi como se um parque de diversões tivesse sido inaugurado e o comportamento explorador de invasores aplaudido pelo público genocida.

“São mais de 20 mil garimpeiros entrando e saindo das áreas, destruindo e contaminando os rios. As mulheres, geralmente, são as mais afetadas por essas invasões, pois são responsáveis por cultivar os alimentos e também por nutrir os corpos das crianças através de uma complexa rede de alimentos e plantas preparadas e combinadas para cada fase de formação para um corpo adulto saudável.” relatam Ana Maria Machado e Marielly Ferreira, pesquisadoras e apoiadoras da Rede Pró Yanomami e Ye’kwana.

Um país no qual a principal figura governamental disserta sobre assuntos referentes aos povos indígenas com desdém, se negando a compreender a notoriedade da cultura para o ecossistema, se dominar indígena no passado e no atual Brasil é ser símbolo de resistência. “É revoltante e frustrante ver que tantos direitos já garantidos aos povos indígenas estão sendo atacados e estamos retrocedendo por mérito do próprio governo. Eles veem a floresta apenas como mercadoria e não entendem nossa relação com ela, são lugares vivos, povoados por vários seres e fundamentais para o equilíbrio do mundo.”

“Os indígenas prestam serviço ambiental ao mundo todo ao manterem suas florestas em pé.”  Stefany Kambeba, indígena e estudante da UFG.


    “Continuamos lutamos pelos mesmo motivos há 500 anos atrás. Por demarcação de terras, reconhecimento enquanto civis, autonomia de poder cultivar os alimentos sem venenos em nossas terras e águas, até pelo direito de estudar e permanecer nas universidades. Nós sabemos da trajetória do nosso povo pela causa índigena, infelizmente ela está bem longe de ser alcançada, temos muito a conquistar ainda.” Relata a indígena e estudante da UFG, Stefany Kambeba, quando perguntada sobre a luta que vai além do vírus atual.



A falta de visibilidade indígena no atual Brasil


Indígenas são povos múltiplos, nos quais cada tribo possui em sua individualidade uma cultura extremamente rica, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem 225 povos indígenas, além de algumas referências sobre 70 tribos vivendo em locais isolados e que ainda não foram contatadas. Eles possuem o direito de contar a própria história, são produtores de saberes, conduzindo seus ideais e suas crenças por um extenso período chegando até os dias atuais.

Quando falamos sobre luta de classes e a consciência delas, precisamos notar aspectos maiores do que os mostrados vez ou outra pela mídia, por trás de grupos denominados por minoria - tanto por números, como sociologicamente - existem danos unitários que acabam por se tornarem coletivos em decorrência de tantos acontecimentos, como é caso do racismo e a xenofobia que os originários enfrentam no dia-a-dia. O preconceito e a invisibilidade é uma realidade vivida tanto pelos indígenas aldeados como indígenas urbanos, a sociedade de modo geral procura aos povos nativos em datas específicas para celebrar sua cultura, mas nunca como um povo a ser respeitado e tratado com equidade ao decorrer dos anos.
    A luta indígena exposta de forma pontual não contribui ao movimento, mas alimenta o pensamento de que são pessoas isoladas que não podem ser introduzidas como ser comum e tratadas como tal. “Acredito que ser representada é um ato de cidadania, nós indígenas temos pouquíssima representatividade nos meios de comunicação da grande mídia e quando resolvem mostrar o indígena, mostram de um ponto de vista colonialista, caricaturesca, como se vivêssemos como em 1500. Esse tipo de imagem estereotipada só aumenta o preconceito que a sociedade nacional tem em relação aos povos tradicionais”. Declara a jornalista e indígena Olinda Muniz, ao ser perguntada sobre representatividade na mídia atual brasileira.

O que é exibido para a grande massa em relação ao povo indígena, não surge de repente como uma invenção. Existe um pensamento limitado - e um tanto quanto preconceituoso -  que antecede a produção da retratação do povo nativo e os fazem emitir de forma rasa, uma cultura rica e desmedida. Entrando nesse caminho das mídias que podemos apelidar de caminho branco, existe a falácia do falso dedutivismo do que é ser indígena de fato, fazendo discorrer por anos e ainda impregnado em nosso presente esse personagem - quase que um mascote indígena - pronto para exibirem tanto na TV, como nas redes sociais.

Os relatos apresentados na matéria mostram o quão honrosa é a luta indígena no Brasil. Hoje além de combater com suas próprias mãos criando suas medidas de segurança, conscientizando para que os mesmos não saiam de suas aldeias, os nativos precisam lidar com o garimpo ilegal contaminando sua flora, direitos governamentais sendo apagados e até a  falta de espaços na universidades nacionais, como relata  Stefany Kambeba. “Até para ingressarmos na vida acadêmica, também é difícil ainda, as pessoas não nos querem no lugar de privilégio. As universidades são um lugar de privilégio, na sua maioria são institucionalmente brancas e quando nos colocamos em posições igualitárias dentro das salas de aulas, muitas vezes somos desprezados, nos julgam como se não tivéssemos conhecimento nenhum, desvalidando nosso conhecimento, nós temos muito que aprender, mas também muito a ensinar.”  


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